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O Dia da Doula e a importância de falarmos sobre o contexto histórico cultural da assistência ao parto

por Samanta Giannico @gestar_parir_amar
Arte de Jaya Cósmica

Possibilitar às mulheres parirem de forma respeitosa é revolucionário — e não é de agora.  As doulas, há séculos, são uma das agentes que sustentam a revolução do parto. Chamadas de “comadres” na Idade Média, essas mulheres traziam um aspecto de confiança e acolhimento para quem estava parindo. Hoje as doulas continuam sendo propagadoras do cuidado e acolhimento ao parto, mesmo o cenário obstétrico brasileiro ainda vivendo resquícios da história que vamos contar aqui… 

As doulas e a arte de partejar existem desde os primórdios da humanidade. A cultura de mulheres amparando mulheres é revolucionária desde a antiguidade e atravessa culturas e épocas. 

Há séculos, mulheres acompanham mulheres em seus partos de uma forma não técnica, solidária, ofertando acolhimento e empatia e fortalecendo laços comunitários. Entre os séculos XV e XVI, durante a caça às bruxas na Europa (e mesmo nas colônias), essas mulheres sofreram perseguições que encontram eco nos dias atuais. 

A humanidade chegou até aqui através de mulheres que pariram e pelas mãos de mulheres que as apoiaram em seus partos. Doulas são uma das bases do movimento atual para o resgate da autonomia do corpo da mulher. Elas compõem a equipe multidisciplinar de assistência à gestação e ao parto e prezam pelo olhar integrativo no cuidado com as mulheres. 

E, pra você entender a importância da doula e do papel de mulheres que apoiam mulheres parindo, vamos olhar um pouco para nossa história como mulheres e mamíferas? 

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Desde tempos imemoriais, o parto é parte da experiência social e comunitária. Mulheres que acompanhavam gestantes utilizavam conhecimentos transmitidos por meio da observação e da prática, das mais velhas para as mais novas. As parteiras eram figuras centrais no parto fundado em conhecimentos tradicionais. 

No Egito Antigo, há registros em papiros que descrevem parteiras e comadres auxiliando parturientes. Na Grécia e Roma antigas, elas foram mencionadas em textos de Hipócrates e Sócrates, descritas e valorizadas por sua habilidade e sabedoria. Durante a Idade Média, o papel das mulheres acompanhando partos (inclusive a parteira) se tornou algo essencial, embora cercado de superstições. As parteiras também desempenhavam funções espirituais, invocando bênçãos ou realizando rituais. Em algumas regiões, a igreja controlava a atuação das parteiras, temendo práticas que consideravam heréticas.

No século XVI, o parto ainda era considerado um assunto de mulheres: os partos eram realizados em casa, com a presença de uma parteira e de uma comadre (doula) e, muitas vezes, da mãe da parturiente. A medicina não tinha muito conhecimento em relação ao parto, e as parteiras eram as representantes do que havia de melhor no conhecimento e na assistência ao parto (STORTI: 2004). Normalmente, “os médicos eram chamados apenas ocasionalmente, em casos de partos difíceis, mas, ainda assim, nessa época, o poder de decisão continuava sendo da mulher, sua família e/ou amigas” (HELMAN: 2003, p. 159).

No início do século XVII, aos poucos, as parteiras e as comadres foram perdendo lugar com o surgimento da figura do cirurgião na assistência ao parto (MALDONADO: 2002) e as mulheres foram desapropriadas de seus saberes, de sua função como parteiras e dos domínios no campo da parturição (TORNQUIST: 2002).

Cabe dizer que um dos fatores que contribuiu para o declínio do papel da parteira e da comadre e para a legitimação do médico com formação foi a caça às bruxas, ocorrida entre os séculos XV e XVIII. As parteiras causaram incômodo e afronta às autoridades da época, por terem uma assistência intervencionista, uma vez que davam conselhos e amenizavam a dor do parto numa época em que se acreditava que a mulher deveria sofrer a expiação do pecado original (SPINK: 2013). 

Com a institucionalização do parto, houve o afastamento da família e da comunidade no processo do nascimento, pois a estrutura física e os hábitos hospitalares não foram planejados para assistir as parturientes, mas, sim, as necessidades dos profissionais de saúde e dos médicos (DINIZ, 2001; OMS, 1996). Com isso, grande parte das mulheres passaram a permanecer internadas em quartos coletivos, sem privacidade, tornaram-se assim passivas diante das regras e ficaram privadas da presença de uma pessoa de sua confiança para apoiá-las (BRUGGMANN; PARPINELLI; OSIS, 2005). 

O momento do parto passa a ser cada vez mais constituído de normas de comportamentos e protocolos definidos pela instituição hospitalar e por médicos, na sua grande maioria, homens. Com isso, as mulheres tornaram-se cada vez mais passivas e perderam por completo sua autonomia no processo de parir, inclusive de terem alguém de sua escolha nesse acompanhamento e de desfrutarem da livre movimentação durante o processo do parto, surgindo assim a posição litotômica (ginecológica), usada como protocolo, pois era mais favorável e confortável ao médico que acompanharia o parto, e não favorável ou fisiológico à parturiente. 

O parto se tornou única e exclusivamente um evento médico, perdendo seu caráter social, emocional, cultural e ritualístico, iniciando-se, assim, a medicalização do corpo feminino, em conjunto com a apropriação e a centralização do processo pela medicina. Com a institucionalização, muito se ganhou na questão tecnológica e na diminuição de mortes maternas e neonatais, mas também muito se perdeu em relação ao ambiente acolhedor e à autonomia do corpo feminino.

No início dos anos 60, houve a invenção da técnica que possibilita o manejo da dor, ou seja, introduziu-se o parto sem dor pela facilitação da anestesia peridural (SZEJER; STEWART, 1997). A medicalização do nascimento fez com que houvesse maior distanciamento entre as culturas e obstétricas do nascimento (HELMAN, 2003). Para esse mesmo autor, “os rituais médicos e a tecnologia médica representam uma forma de domesticar o incontrolável (principalmente do feminino) e de torná-lo mais ‘cultural’, (p. 154). Assim, o parto no ambiente hospitalar, em muitos casos, faz crescer o fator estressante na mulher, por ser um local desconhecido, no qual é cuidada por pessoas que também são desconhecidas, perdendo a oportunidade do parto como um evento também acolhedor, transformador, humanizado e com escolhas que partem da família, e não da equipe médica. A centralização das decisões na equipe de assistência médica — únicas detentoras do saber e dos processos decisórios — abriu espaço para a entrada da violência obstétrica e de violências como de gênero e raça. 

A obstetrícia moderna tornou gestações e partos de risco mais seguros, quando realizados em hospitais e com equipes especializadas em situações de risco no nascimento, no entanto, passamos a normalizar o nascimento pela via cesárea, que se torna largamente usada sem indicação específica, transformando assim o cenário do nascimento. Hoje somos o segundo país mais cesarista do mundo, com cerca de 55,7% dos nascimentos vivos ocorrendo por meio desse procedimento cirúrgico. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que a taxa de cesáreas seja de 10 a 15%. Essa transformação no cenário da assistência ao parto acarretou no distanciamento da parturiente de sua família, de seu processo fisiológico e do nascimento como um fator ritualístico e individual. Só recentemente, o pai começou a ser aceito nas salas de parto em hospitais. 

É por isso que hoje doulas estão também na linha da defesa das evidências científicas atualizadas, a luta contra a violência obstétrica e pelo direito ao parto com respeito e à assistência humanizada. 

Doulas são uma das bases do movimento para o resgate da autonomia do corpo da mulher e do princípio da centralização do processo na mulher, e não no médico ou nos profissionais de saúde. As doulas compõem a equipe multidisciplinar de assistência à gestação e ao parto e prezam pelo olhar integrativo dos fatores sociais, emocionais, fisiológicos e informativos na atenção e no cuidado a gestantes e suas famílias. 

Fontes: 

DONELLI, Tagma Marina Schneider. O parto no processo de transição para a maternidade. Porto Alegre: UFRGS, 2003. (Dissertação de mestrado em psicologia do desenvolvimento) 

MALDONADO, Maria Tereza. Psicologia da gravidez: parto e puerpério. 16a ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

https://www.scielo.br/j/reben/a/hMBfW8LZthmhn4yX4HVPPcq/
https://www.scielo.br/j/ean/a/ShMjVbNBWPBPZYRbFtLLdNs/

 

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