Por Cristine Takuá para a Mandala Lunar 2022
O atual modelo de sociedade em que estamos inseridos nos faz esquecer de quem realmente somos, não deixando espaço para olharmos para o fundo de nossa essência e atravessar as barreiras do desconhecido. Junto a isso, a imensa fonte de informações na qual estamos mergulhados, os maus hábitos alimentares, o egoísmo, o desamor e a falta de bom senso estão nos conduzindo para uma vida insana. Sabe-se que atualmente vivemos uma emergente e complexa crise social, política e ambiental que nos leva a questionar e repensar o ser e o saber, resultando numa conscientização de que temos que reaprender a pensar e agir no mundo. No entanto, os seres humanos – em incessante busca de compreensão, dominação, ordenação e controle sobre o meio e sobre si mesmo – acabam por desestruturar a natureza provocando seu desequilíbrio.
De um modo geral, a civilização ocidental está percebendo que uma quantidade de pressupostos que a sustentaram por muito tempo estão levando a uma situação totalmente insustentável do ponto de vista da sobrevivência da espécie, notadamente no que diz respeito às condições ambientais. Uma das principais coisas que as sociedades indígenas têm e que tornam seu pensamento valioso é justamente uma outra maneira de conceber a relação entre a sociedade e a natureza e entre humanos e não humanos. Em resumo, outra forma de compreender a relação entre a Humanidade e o restante do cosmos. Procura-se pelo equilíbrio, onde todos os seres interagem e se respeitam, não só os mais velhos, anciãos e pajés, mas todos; até os jovens e crianças.
Para os povos indígenas, a natureza é o que dá sentido à vida. Um organismo vivo, onde, tudo está em equilíbrio, como uma imensa teia, na qual tudo está interligado. O seu poder está em nos direcionar, nos mostrar o caminho de luz a trilhar em busca de sabedoria. Cada sinal que recebemos dela tem um significado para a nossa vida. O canto de um pássaro pode indicar algo, os trovões que passam são sinal de que algo está para acontecer, as formigas no meio do caminho, as formas das nuvens, a direção do vento, enfim, muitos presságios nos são transmitidos pelos sinais da natureza que, com sua delicadeza e sabedoria, vão nos guiando e ensinando como Bem Viver – que em guarani se falta Teko Porã. Esse conceito filosófico, político, social e espiritual se refere exatamente a essa grande teia onde vivemos em equilíbrio, respeito e harmonia. Ele é a representação da boa maneira de Ser e de Viver.
Toda essa complexa crise de relações que os humanos estão vivendo nada mais é do que o reflexo de séculos de uma caminhada mal feita, pois antes quase todos viviam na natureza, com a natureza e da natureza. Hoje as pessoas usam e abusam da natureza para sobreviver, se “des-inserindo” do meio, sem pensar que fazemos parte dessa imensa teia da qual não devemos e não podemos nos separar.
Para o povo Guarani, não há Teko se não tiver Tekoá; ou seja, não existe “modo de ser” sem o “lugar do ser”. Sendo assim, é preciso ter terra, com floresta, água e toda a sua vida incluída para poder viver sua cultura e ser Guarani. Vivenciar o sentido pleno do Bem Viver, nos dias de hoje, pode muitas vezes parecer algo contraditório, devido a diversas situações que nos levam para o Teko Vai, o Mal Viver. Ele está presente no consumo desenfreado e na esquisita, mania da servidão voluntária em que muitos vivem escravos de seus quereres. Está também presente nas guerras, no individualismo, na poluição dos rios, no empobrecimento, na depressão, em diversas situações que colocam o ser humano em uma incessante buscas por Viver Melhor, ilusão de que bens materiais, conforto e luxo irão trazer a delicada e profunda satisfação da experiência que penetra no próprio ser e estar quando se alcança o Bem Viver nas ações diárias da Vida.
É possível aplicar esse sistema, esse hábito indígena do Bem Viver nas cidades para revolucionar, metamorfosear as relações e a própria democracia que está despedaçada em meio a tantos abusos e egocentrismos. Através da prática desse amplo conceito, podemos equilibrar todo o caótico cenário de violências, poluição e intolerância religiosa que paira sobre as cidades. Os povos indígenas resistem há séculos contra os mais diversos abusos e agressões cometidos contra eles e suas culturas. Mesmo assim praticam o respeito, a tolerância, a igualdade, a participação política, a paciência com os mais velhos e as crianças, enfim: praticam o Bem Viver em suas múltiplas faces.
Ainda há tempo de nos reconstruirmos e harmonizarmos! Há alguns caminhos, como práticas educativas do Teko Porã. As sociedades urbanas podem repensar as formas de educar suas crianças, valorizando o potencial que jaz dentro de cada uma e, principalmente, fazendo uma escola que seja útil para a vida das pessoas. Muitos dizem que a escola serve para nos “tornar alguém na vida”. Muito pelo contrário, já somos “alguém na vida”! Temos que usar as ferramentas escolares para nos tornarmos guerreiros! Guerreiros que possam compreender o complexo sentido do Bem Viver e transformar o mundo à sua volta.
Assim como os grãos, precisamos conhecer nossa origem, a fala que habita cada semente. Todo ser que consegue escutar a voz do silêncio ouve as suas verdades. Há uma ponte entre conhecimento visível e letrado e o saber que habita as profundidades dos cantos, danças, trançados e toda a complexidade da arte e espiritualidade dos povos nativos. É necessário romper as barreiras da aparência pois, enquanto nos prendermos ao não ser das coisas (as aparências), jamais chegaremos à dimensão maior do verdadeiro conhecimento, a sabedoria dos que conseguem sentir a sua própria sombra!
Arte de Chana De Moura