Os livros insistem em nos contar sobre os “pais” da história. Desde o “pai da ginecologia” ao “pai da psicanálise”, podemos perceber que o discurso que se propagou foi aquele que colocou os homens como detentores do conhecimento. Hoje sabemos que na verdade as mulheres foram apagadas da História que nos é contada e, por isso, o trabalho de resgatar esses nomes e recordá-los é extremamente importante. Na história da medicina, da ginecologia e da obstetrícia, elas são parteiras, médicas, curandeiras, herbalistas que colaboraram para a construção dos saberes que temos hoje.
A história da medicina no ocidente é marcada por uma série de perseguições às parteiras, curandeiras e conhecedoras das plantas. Na Europa, a inquisição perseguiu e matou centenas de mulheres, acusadas de feitiçaria, com a intenção de acabar com um conhecimento e um modo de ver o mundo, que entendia a natureza como sagrada e as plantas como aliadas e mágicas. Seus saberes foram desacreditados e expropriados.
Conta a história que em 1527, Paracelso, considerado o “pai da medicina moderna”, queimou seu manual de farmacologia confessando que “tudo o que sabia tinha aprendido com as Feiticeiras” (Ehrenreich e English, 1973). Ou seja, o pai da medicina aprendeu com as mulheres. As chamadas “bruxas” eram, na verdade, curandeiras a serviço da população camponesa, consideradas como não profissionais por estarem fora da academia. Elas realizavam a prática médica em suas comunidades, sua ciência fazia parte da cultura popular e muitas vezes os seus cuidados eram a única atenção médica que sua comunidade pobre podia acessar. (Ehrenreich e English, 1973)
A repressão às bruxas “marca uma das primeiras etapas na luta dos homens para eliminar as mulheres da prática da medicina” (IDEM, 1973). Com a eliminação das bruxas, uma prática médica muito mais masculina foi criada, e ela serviu por muito tempo apenas às classes dominantes. (Ehrenreich e English, 1973).
Ainda hoje, em comunidades distantes dos grandes centros urbanos, rurais e/ou periféricas, são as parteiras, as curandeiras (e curandeiros), raizeiras (e raizeiros), conhecedores das plantas que fazem os remédios, as benzeduras, as práticas de cuidado que atendem a saúde de grande parte da população. São locais onde a assistência em saúde não chega, seja por ausência de políticas públicas, por desinteresse de profissionais da saúde e até mesmo por falta de adesão das comunidades locais ao saber médico “oficial”.
Em todas as regiões do planeta, há um conhecimento local produzido pela população daquele território. Saberes sobre as plantas locais (medicinais, alimentícias, venenosas, mágicas), sobre o corpo (para além da fisiologia), sobre a cura e sobre como se relacionar com os seres não humanos. Todos esses saberes foram considerados heréticos pela igreja e posteriormente taxados como “crendice” e outros nomes que menosprezam sua contribuição e visão por colonizadores que queriam impor sua cultura e destruir a diversidade.
Queremos resgatar esses conhecimentos e práticas, manter vivos os saberes e formas de se relacionar com o mundo vivo que não são os da ciência hegemônica (branca e eurocêntrica).
Hoje, as universidades estão cada vez mais sendo ocupadas por novos agentes, por mulheres, por povos indígenas, quilombolas, por pessoas e coletivos de diversos contextos sociais que trazem outras visões de mundo e que ampliam o conhecimento científico – e muitas vezes validam o que os antigos já afirmavam.
Precisamos ampliar nosso entendimento, valorizar o conhecimento tradicional, ouvir as histórias e valorizar esse saber e sua riqueza. Entender que no decorrer da história muitas mulheres rurais, camponesas, quilombolas e indígenas mantiveram esses conhecimentos vivos é um primeiro passo para a valorização dos seus saberes. Assim como perceber que esse conhecimento está muito próximo a nós, pois algumas de nossas mães e avós carregam os saberes ancestrais das mulheres, os saberes das bruxas, feiticeiras e curandeiras do mundo.
Você conhece alguma mulher com saberes ancestrais?
Por outro lado, temos as mulheres dos saberes teóricos, que entraram em universidades e trilharam seu caminho no meio acadêmico. Entretanto, mesmo dentro de um saber já mais reconhecido socialmente, essas mulheres também não tiveram os seus estudos legitimados. Mulheres que foram apagadas dos manuscritos, que tiveram ideias roubadas por homens ou que no decorrer da história deixaram de ter suas obras citadas e reconhecidas.
Resgatamos algumas delas para que seus nomes não sejam esquecidos.
Também conhecida como Trotula de Salerno, ela é a primeira ginecologista da qual se tem registros. Trotula era italiana, viveu entre 1050 e 1097 e, por 400 anos, foi muito conhecida e estudada. Ela foi revolucionária em seu tempo, pois testou chás e medicamentos que amenizavam a dor do parto, contrariando os dogmas da igreja, que afirmavam que a mulher deveria sofrer ao parir. Também realizou algumas cesáreas em situações de risco e defendeu que a infertilidade também pudesse ser atribuída ao homem, e não exclusivamente à mulher.
Ela considerava a prevenção como o aspecto mais importante da medicina. “Os dentes vão permanecer brancos se a pessoa escová-los usando o líquido resultante da fervura da casca de noz em água”, “A combinação de mel, suco de beterraba e água de rosas ajuda a cuidar dos lábios e ainda funciona como batom de cor forte” e ”Os cuidados com a higiene pessoal previnem problemas ginecológicos.” são algumas sugestões escritas em latim, no século XI, por Trotula de Salerno.
Trotula passou por muitas situações de silenciamento, entre eles o caso do editor Kaspar Wolf que publicou o livro de Trotula em 1566 e atribuiu sua autoria a Eros Juliae, um escravo liberto romano. (MOURA, CASTRO e BOGGIO, 2021 apud SIMONI e DEPLAGNE)
Por serem proibidas de acessarem as universidades – que foram criadas como um espaço de produção do conhecimento legítimo – as mulheres foram gradativamente tendo descrédito sobre suas produções intelectuais. Esse descrédito foi promovido inicialmente pela Igreja Católica e depois pelo domínio dos homens nas Universidades. Portanto, médicos e estudiosos da medicina não admitiam que o tratado pudesse ter sido escrito por uma mulher, afirmando que Trotula de Ruggiero era um personagem imaginário. (IDEM).
A obstetra feminista Kate Hurd-Mead foi quem tirou o nome de Trotula do silenciamento, em 1930. Ela revelou sua identidade e comprovou a veracidade e autenticidade de sua obra (IDEM). Se não fosse por Kate, que resgatou a história de Trotula há menos de 100 anos, seu nome poderia seguir apagado para sempre. Kate Campbell Hurd-Mead (1867 – 1941) foi uma feminista e pioneira na obstetrícia que promoveu o papel das mulheres na medicina. Falaremos mais sobre ela no decorrer do texto.
Hildegarda foi uma mulher revolucionária ao seu tempo. Viveu de 1098 a 1165. Com oito anos de idade ela foi enviada ao mosteiro das beneditinas de Disibodenberg, na Alemanha, para ser cuidada pela abadessa Jutta e passou sua vida lá. Aos quinze anos fez votos religiosos, se tornou monja e viveu em regime de ascetismo. Com a morte de Jutta, em 1136, ela tornou-se a abadessa do mosteiro, e foi nessa idade, aos 43 anos, que ela teve sua primeira grande experiência mística. A partir de suas experiências, ela fez várias obras. Conforme Costa (2013) ela relata que recebeu “o encargo de Deus” para escrever e pregar, o que implicou uma mudança radical de vida: sair da reclusão e iniciar uma vida de peregrinação e pregação.
Em uma época em que a intelectualidade estava reservada aos homens, “foi o sobrenatural que permitiu a Hildegarda sair dos estreitos marcos que, em princípio, havia lhe reservado seu mundo, para situar-se em um primeiro plano da espiritualidade e cultura da época” (CIRLOT; GARI, 1999, apud COSTA 2013)
Ela foi uma mulher múltipla e, para além de monja peregrinadora, foi também mística, médica informal, teóloga, poetisa e escritora.
O curioso é que Hildegarda não se reconhecia como uma mulher de extrema sabedoria. Por sua tamanha fé, entendia que aquilo que expressava era uma visão divina de Deus, que não provinha em nada dela, inclusive dizendo abertamente que sequer entendia aquilo que ela via, porque não havia estudado.
Como médica, Hildegarda de Bingen fazia uma estreita correspondência entre o ser humano e o cosmo. Dizia que, “[…] assim como o ano é dividido em quatro estações. Como o dia é dividido em quatro partes. Quatro são os temperamentos dos seres humanos: aquele melancólico, aquele colérico, aquele sanguinário e o paciente. Quatro são, também, os elementos do corpo humano: a bile negra, a biles, o sangue e o flegma. Um certo caráter está ligado a uma determinada parte do dia e estação do ano, como está determinado por um certo elemento do corpo.” (ZAMBONI, 1997, apud COSTA, 2013)
Já no seu “Livro das divinas obras”, ela trata de temas como a Trindade, a Criação e a Redenção, fazendo uma estreita relação entre o homem e o universo. Aqui Hildegarda traça sua antropologia filosófica, em que, além da verdade revelada de que o homem foi criado à imagem de Deus, trabalha a questão da igualdade/diferença entre o homem e a mulher. (COSTA, 2013)
Entre os anos de 1151-1158, escreveu uma grande obra de medicina, Liber subtilitatum diversarum naturarum creaturarum (Livro das sutilezas das várias naturezas da criação), que, após sua morte, foi dividido em duas partes: Physica ou Liber simplicis medicanae (Física ou Livro de medicina simples), que é um tratado de medicina naturalista, em nove livros, e Causae et curae ou Liber compositae medicanae (Causas e curas ou Livro da medicina composta). Estas duas últimas obras tratam das causas das enfermidades, seus remédios e o funcionamento interno do corpo humano e sua relação com o cosmo, dentro de uma visão terapêutica de totalidade holística entre os quatro elementos formadores do universo: terra, água, ar e fogo. Aqui, mantendo-se em seu holismo, em que faz uma íntima relação entre corpo e alma, o homem e a natureza, o natural e o sobrenatural, Hildegarda defende que boa parte das doenças dos homens é consequência do pecado original, da perda da harmonia e da integração entre Criador e criatura, recusando-se a ver a doença como um assunto exclusivamente de ordem física, fazendo constantes conexões entre os males que afligiam a alma e aqueles de que padecia o corpo. (COSTA, 2013)
A primeira mulher a se formar em Medicina no Brasil, em 1887 Nascida no Rio Grande do Sul, Rita entrou na universidade em 1879, logo após um decreto imperial no qual Dom Pedro II condenava a discriminação contra mulheres na educação de nível superior.
Graduou-se em 10 de dezembro de 1887, na Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira faculdade de medicina do Brasil, defendendo uma tese intitulada “Paralelo entre os Métodos Preconizados na Cesariana”. Ousada e à frente de seu tempo, Rita Lobato sofreu inúmeras críticas ao escolher tal tema para sua monografia, considerada na época ofensiva por ter abordado assunto tão pudico e reservado. (Revista Nossa Capa, 2004)
Segundo pesquisas documentais e testemunhais realizadas pelo professor Alberto Silva, da Faculdade de Medicina da Bahia, Rita Lobato Velho Lopes foi a primeira médica brasileira diplomada no Brasil na especialidade de obstetrícia. Além de ser a segunda médica titulada na América do Sul. As conclusões de Alberto Silva estão reunidas nas 250 páginas do livro de sua autoria “A primeira médica do Brasil”, Irmãos Pongetti – Editores, Rio de Janeiro, 1954. (Referência: Ciência e Cultura)
Kate Campbell Hurd-Mead nasceu no Quebec, em 1867 e fez a Faculdade de Medicina Feminina da Pensilvânia, em 1888. Ela foi uma pioneira na área da saúde e defensora das mulheres na profissão médica.
Mesmo sendo uma mulher que já faz parte da História Contemporânea, há poucos registros que trazem uma profundidade sobre sua vida. Sabe-se que ela se especializou em Saúde Pública, Obstetrícia e Ginecologia e foi autora dos livros “A History of Women in Medicine, from the Earliest Times to the Beginning of the Nineteenth Century” (1938) e “A Short History of the Pioneer Medical Women of America” (1933).
Hurd-Mead aposentou-se em 1925 e dedicou-se a documentar a história das mulheres na medicina. Planejando compilar todas as suas pesquisas em um conjunto de vários volumes, a Dra. Hurd-Mead viveu apenas para ver a publicação de seu primeiro volume, cobrindo a história das mulheres na medicina até o século XIX. Ela havia concluído o manuscrito do segundo volume, A história das mulheres na medicina no Hemisfério Oriental, na época de sua morte, em 1941. Ela dedicou grande parte do trabalho de sua vida para garantir que os avanços médicos beneficiassem o maior número possível de pessoas e para garantir que o papel das mulheres médicas na consecução desse objetivo fosse bem documentado e preservado. (Fonte: American Medical Women’s Association, acessado em maio de 2024)
Existem muitas mulheres que contribuíram para a elaboração do conhecimento que temos hoje sobre ginecologia e obstetrícia mas que tiveram seus saberes e pesquisas apagados ou expropriados. Queremos contar essas histórias e reconhecer o trabalho delas, sejam mulheres do meio acadêmico ou dos saberes empíricos. Reescrever a história com os devidos créditos e contribuição dessas mulheres.
Referências:
Da tradução como pagamento de uma dívida histórica: Trotula di Ruggiero, pesquisadora e médica medieval - MOURA, Willian Henrique Cândido; CASTRO BOGGIO, Virginia. “Da tradução como pagamento de uma dívida histórica: Trotula di Ruggiero, pesquisadora e médica medieval”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, e72289, 2021.
Mulheres intelectuais na idade média: Hildegarda de Bingen - entre a medicina, a filosofia e a mística - COSTA, 2013
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hildegarda_de_Bingen - Acessado em 30 de abril de 2024
Bruxas, Parteiras e Enfermeiras, uma história das curandeiras, por Barbara Ehrenreich e Deirdre English
Rita Lobato Velho Lopes: https://educacaomedica.afya.com.br/blog/mulheres-importantes-na-medicina-conheca-11-delas?utm_source=google&utm_medium=organic
Revista Nossa Capa https://www.scielo.br/j/jbpml/a/kYn4KRnyXG4FdXfkLYmKCcc/?lang=pt
Kate Campbell Hurd-Mead
Recomendações online:
Hildegard: https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-61628760
Trótula de Ruggiero: sexualidade e ginecologia na idade média https://www.youtube.com/watch?v=0umptu1SJlI
Trótula de Ruggiero: tradução, historiografia e filosofia https://www.youtube.com/watch?v=QTLepaejUEw
Sobre ginecologia feminista: https://casadeamaterasu.wordpress.com/
Artigo “Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher” https://static.scielo.org/scielobooks/8m665/pdf/rohden-9788575413999.pdf
E alguns livros citados nas pesquisas que fizemos, que pode ser interessante para quem deseja se aprofundar ou entender mais dos temas relacionados a esse texto:
Mamamelis: um guia de Ginecologia Natural, por Rina Nissim
A Medicalização do Corpo Feminino, por Elisabeth Meloni Vieira
Nossos Corpos, Nossas Vidas, por Coletivo de Mulheres de Boston
O Nascimento da Clínica, por Michel Foucault