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Significados inCorporados: o corpo como instrumento.

por Laísla Dantas Chagas

Todas nós, enquanto sujeitos socioculturais, temos maneiras de sentir, interpretar, pensar e agir acerca dos processos fisiológicos do nosso corpo baseadas no sistema de símbolos e interações que faz parte de uma rede de significados, a qual estamos inseridas e que condicionam a nossa experiência. 

Quando falamos da construção (e desconstrução) da experiência feminina, não podemos excluir a maneira como a cultura age como mediadora das experiências pessoais. Para a antropologia interpretativa, a cultura, constituída por uma teia de significados, é um produto de ações viabilizada em um processo contínuo, através da qual o indivíduo dá sentido à sua identidade através de símbolos compartilhados (1). Logo, ao interpretar o discurso em busca de um significado atribuído em torno do corpo feminino e seus processos fisiológicos teremos sempre a cultura enquanto mediadora das experiências pessoais.

Tomemos como exemplo a menstruação ou a menopausa. A forma com que a mulher interpreta e reage aos seus processos biológicos é permeada pelo contexto sociocultural, além de sua história pessoal e familiar que, em certa medida, também contemplará a cultura na qual é pertencente. E não só a sua reação a esses processos, mas as explicações acerca das suas causas e os possíveis tratamentos indicados serão parte dessa mesma cultura e, portanto, diferentes no tempo-espaço.

Essa análise é substancial, pois ao interligarmos a corporalidade e socialização começamos a compreender o uso social do corpo e os significados incorporados. Mais uma vez, a antropologia nos ajuda ao trazer a noção de técnica do corpo, que remonta a ideia pela qual “as pessoas, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo”, pois “o corpo é o nosso primeiro e mais natural instrumento” (2). 

Ao analisar a tradição, como parte de um processo e como habilidade apreendida, ao invés de pensá-la como substância natural orgânica, ou seja, como algo inato, sem contexto, introduzimos a dimensão cultural e social, “desessencializamos”, haja visto que não existe uma forma inata de se servir do corpo, mas usos diferentes, moldados e transmissíveis. O que existe é uma interpretação formulada a partir dos conhecimentos, das crenças e dos padrões culturais que adquirimos ao longo da vida, nas relações sociais, arraigados ao contexto cultural local. Esse sistema de símbolos influencia a vivência a partir do nosso corpo.

Um exemplo interessante, contido no artigo Menopause as a Social and Cultural Construction, da socióloga Bre’on Kelly (3), é o dos sintomas da menopausa. O artigo discute a construção social da menopausa a partir de um estudo comparado que possibilita uma análise social dos seus sintomas clássicos (ondas de calor, suores noturnos, secura vaginal), uma vez que em diferentes culturas, mulheres experimentam sintomas diferentes, ou seja, há uma variação cultural na construção e experimentação da menopausa. 

Mulheres de diferentes culturas definem, significam e experienciam a menopausa, de diferentes maneiras. Ou seja, o que antes era tomado como puramente psicológico ou fisiológico é percebido como receptor e mantenedor de coesão social. 

O estudo sistemático a partir de etnografias revelou que sinais clássicos de menopausa não são frequentemente experimentados em países não ocidentais e que esta não demanda necessariamente interferência medicamentosa (4). Uma das correlações levantadas pela pesquisadora está na percepção sobre o valor que determinada sociedade dá à juventude. 

Geralmente, sociedades nas quais o sangue menstrual assume uma conotação negativa, construída em torno da ideia de “sujeira” e práticas de interdição, a menopausa assume, na experiência particular, uma conotação positiva de libertação e amadurecimento da mulher. Já em sociedades onde a menstruação assume uma conotação positiva, relacionada à utilidade da mulher, ou se constituindo como sua própria definição, tendo em vista o seu papel reprodutor – ou onde há uma forte indústria cultural que valoriza a juventude – a menopausa se constitui como uma experiência negativa.

Claro que em nossa sociedade esses limites não são tão definidores assim, visto que há, na sociedade patriarcal, um forte enraizamento de uma relação de dominação masculina que, de forma geral, representa o corpo feminino como caótico e carente de ordem e intervenção, ao mesmo tempo em que as normas sociais de hierarquia alimentam políticas públicas ineficientes que impactam na incapacidade de milhares de meninas e mulheres viverem dignamente, como pode ser percebido no fenômeno de feminilização da pobreza e na falta de acesso a itens de saúde durante o período menstrual.

Em seu livro Sexo e Temperamento – resultado de um trabalho de campo realizado em Papua-Nova Guiné no qual estudava três povos da região em busca dos papéis atribuídos a homens e mulheres –, Margaret Mead constatou que estes não são inatos. São, antes, padrões culturais apreendidos e sustentados; e não respondem a uma questão natural ou biológica, mas ao ambiente social em que viviam. (5)

Esses exemplos reforçam que a forma com que a mulher vivencia e reflete os processos biológicos do seu corpo está intrinsecamente ligada às relações dinâmicas entre indivíduo e sociedade, na medida em que abarca uma interação profundamente interligada entre mecanismos corporais, condições socioeconômicas e esquemas mentais. 

Essa troca evidencia a inseparabilidade entre individual e coletivo e preconiza a análise dos comportamentos a partir da combinação das perspectivas fisiológica, psicológica e social.

Em A dominação masculina – inclusive, fica aqui a recomendação de leitura – Pierre Bourdieu fala que “o corpo e seus movimentos, matrizes universais que estão submetidos a um trabalho de construção social, não são nem completamente determinados em sua significação, nem totalmente indeterminados, de modo que o simbolismo que lhes é atribuído é, ao mesmo tempo, convencional e ‘motivado’, e assim percebido como quase natural” (6). Logo, sendo o nosso corpo elemento fundamental da situação que ocupamos no mundo e dos significados culturais incorporados, só tem realidade vivida enquanto assumido através de ações no seio de uma sociedade; já que o corpo não se define em si mesmo, mas através dessa rede de significações. E sendo ele um instrumento, se apresentará de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. 

É enquanto corpo que tomamos conhecimento de nós mesmas. Podemos pensar assim no corpo como um território, cujas fronteiras não o separam do mundo que o engloba, pois há uma continuidade política, produtiva e simbólica do corpo, o qual revela uma composição de afetos, recursos e possibilidades que, apesar de se singularizarem na experiencia individual, não são individuais. 

Notas:
(1)Geertz, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
(2) Mauss, Marcel. As técnicas corporais. In: Antropologia e sociologia. SP: Cosac Naify, 2003.
(3) Kelly, Breon. A menopausa como construção social e cultural. XULAneXUS, vol. 8, 2011. Disponível em: https://digitalcommons.xula.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1096&context=xulanexus. Acesso em: 04, junho 2022.
(4) Para quem sofre com sintomas, a reposição hormonal tem inúmeros benefícios. Consulte sempre seu médico.
(5) Mead, M. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva, 2009.
(6) Bourdieu, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.

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