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A imagem da mulher ambígua: o feminino como tabu

por Laísla Dantas Chagas

“Mulher é bicho porque sangra, seu corpo é seu brasão, não deixa ninguém esquecer que somos todos animais, mas ela é um bicho estranho, por ter seu corpo reinterpretado pela cultura.

A menstruação, com todos os rituais que a acompanham, torna manifesta a dupla natureza da mulher, como ser cultural e animal ao mesmo tempo. É nessa duplicidade que reside a sua força, pois todos os seres situados na interseção de ordens opostas gozam dos poderes da ambiguidade.” – Monique Augras

De acordo com cada cultura, a mulher oscila entre a segregação e a reverência. Há todo um mundo de significações que só existe pela mulher. Nas narrativas mitológicas é pela enigmática personagem feminina, através do que nela há de pior e de melhor. A ambivalência é uma propriedade intrínseca do Eterno Feminino. Age como ferramenta para explicar o que parece inexplicável. As categorias através das quais os homens encaram o mundo são constituídas como absolutas: eles desconhecem, nisso como em tudo, a reciprocidade.

Entre os aspectos presentes nas narrativas sobre a mulher, o que mais impressiona é a sua ambivalência.

“A mulher é campo e pastagem, mas é também Babilônia”. Bem e Mal que se opõem sob os traços da Mãe devotada e da Amante desleal. Enganadora, esquiva, dissimulada, dúplice, assim é que ela se presta aos desejos contraditórios do homem. Dalila e Judite, Aspásia e Lucrécia, Pandora e Atena, a imagem da mulher é, a um tempo, Eva e Lilith. É a que cura e a que enfeitiça. Ora temida, ora desejada e até exigida, a figura ambígua da mulher se apresenta como a forma mais acabada do mistério feminino; aquilo que inquieta e ao mesmo tempo fascina. A hesitação entre o medo e o desejo, entre o temor de ser possuído por forças incontroláveis e a vontade de captá-las, reflete-se de maneira impressionante nos mitos sobre as mulheres.

Essa ambivalência entre o que é temido e o que é desejado é próprio da duplicidade da instituição do tabu – algo expresso em proibições e restrições, mas que em contrapartida tem potencial de se tornar sagrado. A mulher, vista como mais próxima da natureza do que o homem, devido a sua fisiologia, transita entre diferentes categorias – público e privado, cultura e natureza, sagrado e profano etc, – impondo uma ambivalência ao sistema normativo, ordenado, de classificações que vigora em nossa sociedade.   Assim, o corpo sócio-cultural e fisiológico feminino apresenta traços peculiares, que é transgressor perante a pretendida universalidade masculina.

O tabu, traduzido muitas vezes como impureza/poluição, busca restringir aquilo que é “qualquer coisa que não está no seu lugar”, simbolicamente ou materialmente. É um fenômeno que depende de um contexto, é uma ideia relativa, implica a existência de um conjunto de relações ordenadas e, por isso mesmo, implica também a subversão à ordem. O impuro, o poluente, o profano são aquilo que não pode ser incluído se se quiser manter esta ou aquela ordem.

A grosso modo, é um conjunto de elementos que são repelidos pelo nosso sistema normativo e classificatório. Mary Douglas, antropóloga social, em seu livro Pureza e Perigo afirma que “onde há impureza, há sistema”. Ela mesma é um subproduto de determinada organização social, pois ordenar pressupõe repelir os elementos não apropriados. A mulher, vista como segundo sexo, implica a existência de uma sociedade que assume a figura masculina como o ponto neutro, sendo o diferente, neste caso o feminino, designado ao espaço do tabu.

Sob um ponto de vista de alguns sociólogos, as representações sociais, como tal exemplo da representação do feminino em nossa sociedade, constituem uma ação que norteia nossa compreensão do mundo que nos cerca. Isso quer dizer que a cultura, neste sentido, fornece algumas categorias básicas, uma esquematização na qual ideias e valores se encontram dispostos de forma ordenada. Percebendo, selecionamos, de todos os estímulos que se oferecem aos nossos sentidos, aqueles que nos interessam, tendo em vista a nossa socialização. Assim, diante do cotidiano frenético de impressões, repetimos certos padrões e valores, tão enraizados em nossa construção como indivíduos, que muitas vezes acreditamos que são da ordem do natural. Em grande parte, tudo o que registamos já estava previamente selecionado e organizado no próprio momento da percepção, como um mecanismo de filtragem, na qual só deixamos passar as sensações de que nos sabemos servir.

Aceitamos algumas sugestões desse esquema norteador da cultura e rejeitamos outras a partir de nossa capacidade de agenciamento. Geralmente, as formas mais aceitáveis são aquelas que se integram no esquema em construção, ou seja, são condizentes com eles, porque há em nós uma tendência para rejeitar as esquematizações discordantes de nossa socialização. Mas essa tendência não é uma prisão intransponível, pois pode acontecer que, num dado momento, tenhamos de modificar a estrutura das nossas suposições para acolher novas experiências. Não é impossível que um indivíduo reveja o seu próprio esquema pessoal de classificação.

É a partir da possibilidade de transformar nossa esquematização interna, que a impureza torna-se um símbolo adequado do poder criador. Esse potencial criativo acontece porque o perigo que se corre ultrapassando limites é também uma fonte de poder. A procura do sagrado é sempre acompanhada pelo profano.

REFERENCIAL TEÓRICO:

AUGRAS, M. O que é tabu. São Paulo: Brasiliense, 1982.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008

DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976NOCCIOLI, C. PAES, C. A mulher como alvo de tabu: o fascínio da ambiguidade feminina. Revista de C. Humanas. v.12, n.2, p. 421-431. Viçosa, jul./dez. 2012

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