A benzedura é um bem que se faz para outra pessoa e as benzedeiras são as mulheres da comunidade que recebem um conhecimento transmitido por outra benzedeira.
Sobrinha de benzedeiras, Elzi, hoje motorista de Uber, carrega consigo muitas histórias. “Lembro da minha mãe ir a casa das minhas tias diversas vezes para curar erisipela”, diz. A doença, também conhecida por zipra e mal da praia, é um processo infeccioso da pele causado por uma bactéria que se propaga pelo sangue.
Clinicamente é tratado com antibióticos, mas por ser uma doença que pode vir diversas vezes e se tornar crônica, fica cada vez mais difícil de ser tratada. Elzi diz que a mãe teve diversas erisipelas, e todas as vezes recorria à irmã para tratar.
Ela é natural de Florianópolis, capital de Santa Catarina. Uma mulher de cabelos curtos, grisalhos, olhos claros, voz suave mas potente e com um ótimo senso de humor.
“Um dia minha tia disse pra mim ‘pega uma caneta e um caderno pra começar a anotar as orações’ e eu disse que não tinha os dons que ela tinha de curar as pessoas”, Elzi conta rindo, “minha tia disse que querer o bem, querer curar, já era metade da cura”.
Letícia Grala, em sua dissertação de mestrado, afirma que “as benzeduras, engendram interlocuções, gestos, manipulação de objetos e ervas, voz e palavras, num ritual de cura.”
A figura da benzedeira possui raízes profundas na história do Brasil, remontando aos tempos coloniais mas que se atualiza na contemporaneidade. Elas representam a fusão dos conhecimentos vindos das tradições africanas, europeias e indígenas.
São conhecidas pelas orações de cura até a habilidade de identificar as propriedades de folhas, cascas e cipós benéficos para o corpo e a alma. Na cultura popular brasileira, o dom do benzimento é visto como uma dádiva divina – que pode ser herdada intergeracionalmente ou recebida diretamente, como um dom.
Mas a imagem da benzedeira passou a ser frequentemente ligada a mulheres idosas, moradoras de áreas rurais, vilarejos pequenos, não sendo incomum as pessoas relacionarem as benzedeiras com a bruxaria ou a feitiçaria. Essas figuras, no entanto, representam papéis diferentes no imaginário coletivo, embora estejam estreitamente relacionadas.
O que une essas mulheres é, principalmente, a prática de sabedoria popular e manutenção dos saberes ancestrais, somadas ou não a uma revolta da autoridade imposta pela religião e às condições de vida.
“Por muito tempo a história da caça às bruxas foi apagada, transformada em lenda. Então muitas pessoas hoje não sabem, na verdade, que as mulheres foram acusadas de bruxas. Eram mulheres de verdade que foram acusadas, presas e mortas. E precisamos conhecer essa história” diz Silvia Federici, filósofa italiana e autora do livro Caliban e a Bruxa, em entrevista para a TV Boitempo.
Diferentemente da Europa – onde as mulheres eram caçadas e mortas – as diversas correntes formadoras de pensamento religioso no Brasil, permitiram uma maior tolerância às práticas associadas ao sobrenatural – ainda que a cultura indígena e africana tenham sido radicalmente perseguidas e discriminadas pelos colonizadores.
Isso porque o próprio contexto da colônia, onde os recursos médicos eram escassos, fomentava a prática das curandeiras e parteiras. Assim, o temor pela feitiçaria, presente em todas as sociedades, não se transformou aqui no pânico coletivo associado à bruxa satânica, que cultua o diabo, pratica o infanticídio e que, por isso, eram caçadas e dizimadas.
Em sua dissertação Letícia explica que a benzedeira da ilha de Florianópolis, por exemplo, é conhecida por lidar com forças sobrenaturais, como a bruxa. A benzedeira é capaz de desfazer um bruxamento. A benzedeira, então, é vista como uma mulher que faz o bem.
E a bruxa como um ser que aparece de variadas formas (luz indefinida, animais voadores e mulheres conhecidas) praticando ações maléficas inconscientes que podem, inclusive, emergir de virtudes. Em sua tese, Letícia explica que a admiração em demasiado por alguém, por exemplo, pode provocar olho gordo.
“De todo modo”, Letícia explica, “a bruxa é sempre uma mulher, o que é reforçado pela ideia de que toda e qualquer mulher é uma bruxa em potencial”.
Mas o curioso é que a relação entre bruxa e benzedeira está intimamente ligada e aparece recorrentemente nas narrativas, porque demonstra um poder de domínio das mulheres, uma inversão dos papéis masculinos e femininos construídos pela sociedade.
Na realidade, a bruxa era muitas vezes uma conotação para aquelas mulheres que levavam a vida sozinhas, viviam até uma idade avançada e sabiam manipular ervas. Eram apenas mulheres independentes, cultivando tradições inofensivas, que passavam de mãe para filha.
A benzedeira e a bruxa representam, então, as duas faces do poder que está relacionado às mulheres: um poder perverso, representado pela bruxa, e um poder benéfico e protetor, representado pela benzedeira.
De todo modo, essas mulheres fazem a manutenção dos saberes, transmitindo conhecimentos de uma geração para outra, de mulher para mulher, movimento que nos dias de hoje têm ganhado cada vez mais valor.
“O conceito de bruxa é realmente o centro de uma batalha, (…) a palavra ‘bruxa’ foi elaborada por aqueles que as perseguiam, não pelas próprias mulheres. A coisa mais importante é não apenas abraçar esse conceito, mas também aprender mais, se familiarizar com a história das mulheres, a verdadeira história das mulheres que foram acusadas, presas, perseguidas e brutalmente mortas”, diz Federici.
A palavra “bruxa” foi elaborada em um contexto de perseguição das mulheres que faziam práticas de cuidado, conheciam e curavam em suas comunidades. Precisamos conhecer a história dessas mulheres e sua perseguição, entendendo como essas dinâmicas aconteceram e acontecem em nosso território.
Hoje estamos retomando esse conceito de uma forma positiva. As bruxas da atualidade não seguem doutrinas específicas. São mulheres em busca da liberdade, que fogem da expectativa da sociedade e que buscam diariamente estarem conectadas à práticas intuitivas, com intenção e propósito.
Juliana Fronckowiak
Farejadora de Histórias
Ilustração de Chana de Moura para a Mandala Lunar 2018
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Referências:
DUARTE, Janluis. Houve Bruxas no Brasil? Artigo científico de 2005 da Universidade Federal da Paraíba: 2005 Link.
PESSOA, Fernanda. Eu que te benzo, Deus que te cura. Trabalho de Conclusão de Curso do curso de Jornalismo, 2014, Universidade Federal de Santa Catarina. Link
NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. O Nascimento da Bruxaria. São Paulo: Imaginário, 1995
2 Comentários
Edi Cogo
Devemos reconhecer que é necessário o resgate ao trabalho de todas as mulheres que se dedicaram à cura. Dedicação esta que, em muitos casos, foi a causa de perderem suas vidas.
Adorei o texto
Simone Aparecida Prando
Eu agradeço as minhas ancestrais curandeiras…
Minha avó e a minha tia passaram seu conhecimento para mim.
Amo lidar com as ervas❤🌿🌿