Arte de Luiza Guedes
Texto de Juliana Fronckowiak
Mulheres de meia-idade, com semblante sereno e sábio, mãos calejadas e hábeis que refletem anos de experiência: pode ser que essa seja a imagem mais presente no imaginário coletivo da nossa sociedade quando o assunto gira em torno das parteiras.
A proposta deste texto é entender mais sobre esse universo. E para isso, temos que começar, literalmente, pelo começo: o parto.
Diversas culturas ao redor do mundo celebram o parto como um evento sagrado que abraça rituais e práticas ancestrais por um motivo básico e elementar: a continuidade. O nascimento é um momento fundamental para qualquer espécie, na medida em que é meio de manutenção da vida.
Para a mulher que gera — e não menos importante para o bebê que nasce —, o parto é um momento marcante como experiência biológica e psicológica. Cabe a pergunta: por que nos distanciamos tanto da visão sagrada e natural sobre o nascimento e passamos a viver o parto como um evento não raramente traumático?
No que diz respeito a esse assunto, se traçarmos um paralelo entre o modo de vida dos povos originários e o modo de vida ocidental, perceberemos um grande espaço. E talvez o mais importante a ser dito é que esse espaço ficou cada vez maior à medida que o parto passou a ser enxergado como um evento médico, não mais fisiológico.
É comum que as gestantes à nossa volta experimentem sentimentos distintos e, por vezes, até contraditórios no momento de parir — como a felicidade pela chegada do bebê e o medo de morrer e de serem maltratadas impunemente nas maternidades.
O parto passou de um processo natural e familiar para um evento médico com intervenções — sendo que essas, na maioria das vezes, trazem mais malefícios que benefícios para as gestantes e seus bebês.
As professoras Luciana Aparecida Palharini e Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa explicam bem no seu artigo “Gênero, história e medicalização do parto: a exposição “Mulheres e práticas de saúde”:
“No Brasil, a criação de maternidades data do início do século XX, quando as reformas sanitaristas se tornaram mais intensas e a medicalização do parto foi vista como uma das estratégias de civilização da população.
A resistência das mulheres em parir fora do ambiente doméstico foi cedendo lugar à confiança na figura do médico-parteiro, construída pelo discurso médico, e no ambiente hospitalar, à medida que melhoravam a segurança e a assepsia desse espaço.
Essa mudança, contudo, não se deu de forma contínua nem sem conflitos: entre médicos e parteiras, entre o conhecimento institucionalizado masculino e o saber tácito feminino, entre o médico, homem, e a parturiente, mulher, configurando relações de desigualdade de gênero que estão na origem do estabelecimento da medicina como saber validado política e socialmente.”
Assim, começa uma nova história na atenção ao parto e nascimento, que antes não era visto como um ato médico e acontecia no ambiente doméstico, íntimo e por mulheres cuidando de outras mulheres. Com essa mudança, a figura da parteira passa a ocupar um lugar associado à ignorância, à falta de capacidade técnica e ao subdesenvolvimento no imaginário coletivo da sociedade moderna.
Passamos por momentos sombrios e dolorosos. A boa notícia é que hoje há um grande movimento que resgata a dignidade do nascimento e busca unir o ancestral e o científico, o racional e o empírico, e que, principalmente, prioriza enxergar a gestante e o ser que vem ao mundo.
Com o avanço da tecnologia médica e o surgimento de intervenções como a anestesia epidural, o monitoramento fetal eletrônico e a cesariana, o parto passou a ser visto cada vez mais como um evento que devia ser controlado e gerenciado por profissionais de saúde em ambientes hospitalares.
Estamos falando do final do século XIX, quando o parto hospitalar começou a se consolidar como prática dominante.
Antes de 1850, as mulheres eram impedidas de estudar Medicina em diversas partes do mundo. No Brasil, o primeiro curso de Medicina para mulheres foi criado em 1888, na cidade de São Paulo.
Percebemos que a marginalização das mulheres foi a principal questão: seja pelo não acesso às faculdades de medicina, seja pela desqualificação das práticas populares, no caso das parteiras tradicionais. A partir daí, podemos visualizar dois caminhos diferentes, mas complementares: o caminho da resistência pela tradição e o caminho da resistência pela obstetrícia.
“A parteria tradicional costuma ser uma sabedoria, uma experiência que vai sendo passada de mulheres mais experientes, como tia, mãe, vó, que são parteiras. Vão passando para gerações mais novas da família para que elas também participem e aprendam”, explica Naolí Vinaver, parteira tradicional mexicana e referência internacional do parto humanizado, em entrevista à Mandala Lunar durante a marcha a favor do parto humanizado, em 21 de abril de 2024.
Naolí cresceu e viveu na área rural de San Andres Tlalnelhuayocan, estado de Veracruz, México, cercado pela comunidade indígena de Rancho Viejo e composta por pessoas que trabalhavam na terra e pariam os filhos dentro de casa.
Em 1986, quando Naolí tinha 21 anos e estava terminando sua graduação em Antropologia, ela começou a ter uma série de sonhos, todas as noites, sobre nascimentos. Isso a levou a ler livros de parteria e obstetrícia. Em questão de pouco tempo, conheceu parteiras e aprendeu diferentes técnicas.
Atualmente, Naolí é conselheira e mentora da equipe de parto Ama Nascer, que ela cofundou em 2014 e é um dos maiores símbolos de resistência da parteria tradicional no Brasil. Ela já assistiu mais de 1.800 partos ao longo de sua carreira e não abriu mão dos seus princípios: continua como defensora e praticante do parto domiciliar.
Julia Dias é aprendiz da parteria tradicional desde os seus 17 anos. Ela conta que sua avó, já falecida, era parteira no interior de Santa Catarina, em Timbó Grande. A avó e o marido, avô de Julia, atuavam atendendo os partos da região.
“Na época, ela tinha até um diploma do Ministério da Saúde — que eles davam para as parteiras tradicionais para elas atuarem. Depois de um tempo, isso acabou e agora a gente não tem mais esse reconhecimento”, ela conta.
Julia conta que foi quando a avó faleceu que começou o desejo de trabalhar com parto.
“Também não sabia como, não sabia se existiam parteiras tradicionais atuantes. Eu tinha um imaginário de que eram só as velhinhas, o que é uma coisa, um folclore que a gente tem na nossa cabeça”, ela diz.
Julia considerou fazer enfermagem, mas entendeu que queria seguir o caminho da tradição.
“Finalmente eu encontrei as parteiras aqui de Santa Catarina e fui me aproximando aos poucos. Esse foi o meu processo, mas o processo de cada uma é muito individual, porque o processo da parteria tradicional é um processo autônomo”, ela explica.
“Algumas acabam começando a atuar pela necessidade da comunidade, outras porque tem uma parteira mais velha por perto e daí já começa na prática. Então vai variar muito a vivência de cada uma, né? Mas, oficialmente, a parteira tradicional é a parteira que é reconhecida pela comunidade e que não tem uma formação acadêmica na área da saúde”, conclui.
A partir de 1879, permitir que as mulheres entrassem nos cursos de medicina foi uma vitória política importante. Isso não só garantiu igualdade no acesso ao ensino superior, mas também marcou o retorno das mulheres ao cuidado com a saúde, uma área da qual foram afastadas por muito tempo, de uma forma, digamos, assegurada e permitida pela ciência masculina.
Historicamente vinculada ao gênero, desde sua implantação no Brasil, a enfermagem continua a reproduzir ações e valores igualmente ligados ao universo feminino. No Brasil, mais de 80% dos profissionais de enfermagem são mulheres, segundo pesquisa do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Mas, só em 1930, a enfermagem no Brasil passou por um período de expansão e profissionalização. Novas escolas de formação foram criadas em várias partes do país, e a profissão começou a ser regulamentada.
A obstetrícia é o braço da Medicina que trata da saúde da mulher durante a gravidez, o parto e no período logo após o nascimento da criança. Os profissionais de enfermagem estão envolvidos em todos os níveis de cuidados à saúde. Na obstetrícia, os enfermeiros desempenham papel fundamental no processo de pré-natal, parto e pós-parto, já que são os profissionais mais próximos da gestante.
Juliana Ribeiro, enfermeira obstetra desde 2006 e parteira da Equipe Hanami, trabalha com parto domiciliar há 10 anos. Juliana foi uma das organizadoras da marcha nacional a favor do parto humanizado, que aconteceu dia 21 de abril de 2024.
A marcha também teve o objetivo de dar um fim às perseguições da comunidade médica contra as parteiras e de oportunizar que outros profissionais que não são médicos ganhassem esse espaço do parto humanizado e respeitoso.
“Essa perseguição veio muito a partir do movimento da própria Organização Mundial de Saúde, quando preconizou que os partos de risco obstétrico habitual fossem atendidos por enfermeiras. E aí as enfermeiras, na sua autonomia, estão saindo do ambiente hospitalar, porque a gente sabe que existe uma limitação de protocolos dentro do hospital e estão indo para o parto domiciliar, para o atendimento do parto domiciliar. E isso dá uma autonomia que gera um conflito entre o sistema também, né?”, Juliana conta.
Ela continua: “precisa existir uma cumplicidade entre os profissionais, entre as equipes e os profissionais: equipe médica, equipe de enfermeiras, equipe de parteiras, equipe de doulas. todo mundo se complementa nesse trabalho. Essa marcha foi para trazer essa união de que nós estamos em prol da mulher, não a favor de nós mesmos, de ela ter autonomia no parto dela, de ter o parto como ela quer, parir onde ela quer, com quem ela quer”, conclui.
O objetivo da marcha é o de continuar lutando pela autonomia de escolha da mulher na hora de parir. Hoje, o que muitas vezes acontece é a imposição do local e de um profissional para atendimento.
“Isso não pode existir, porque nós somos diversos no atendimento e na assistência ao parto. E as mulheres são diversas e suas escolhas também precisam ser valorizadas”, conclui a parteira.
No Brasil, a chance de dar à luz sem intervenções durante o trabalho de parto é remota. Apenas 5% das mulheres tiveram essa experiência segundo a pesquisa nascer no Brasil, de 2015, coordenada pela Fiocruz (a primeira pesquisa que deu voz às mulheres para falarem dos seus partos e nascimento dos seus bebês no Brasil).
O levantamento mostra que 30% das mulheres atendidas em hospitais privados sofrem violência obstétrica, enquanto, no Sistema Único de Saúde (SUS), a taxa é de 45%.
A violência obstétrica surge principalmente no ambiente hospitalar, onde é exercida pelos profissionais da área de saúde que encontram a paciente em um estado vulnerável de gravidez e estabelecem uma relação de domínio violento.
Desde 1985, a comunidade médica internacional considera que a taxa ideal de cesárea seria entre 10 e 15%. Mas o setor suplementar de saúde brasileiro apresenta uma realidade única no mundo, com mais de 80% dos partos via cesárea. Já no Brasil como um todo (somando os setores público e privado de saúde), a proporção de cesáreas entre os 2,7 milhões de partos realizados em 2021 foi de aproximadamente 57%.
Os gastos em saúde são mais altos nas cesáreas, os riscos de morbimortalidade são mais altos tanto para a mulher como para o feto neonato na cirurgia sem indicação clínica adequada, tornando o parto no Brasil um problema de saúde pública.
Há um movimento global em direção ao resgate das origens do nascimento que combina conhecimento científico com práticas empíricas tradicionais. Essa abordagem integrada valoriza tanto os avanços médicos quanto a sabedoria acumulada por gerações de mulheres e parteiras, que entendem o parto como um processo natural e transformador.
E pra isso, é importante entender que o retorno às práticas mais naturais e centradas na mulher não significa a rejeição da tecnologia ou dos avanços médicos, mas sim seu uso de maneira que se complementem e sem que suprimam a experiência natural do parto.
A Medicina moderna tem muito a oferecer, mas seu papel deve ser o de suporte, garantindo a segurança e fazendo intervenções apenas quando necessário. Dessa forma, respeitamos o processo natural e promovemos um nascimento mais harmonioso e menos intervencionista.
“É preciso saber identificar quando que já não pode mais ficar em casa, então já vira uma combinação da parteria tradicional, um vínculo com um sistema médico que idealmente vai ser um vínculo amigável, que vai ser um recebimento, um abraço amigável para essa mulher que precisa desse cuidado, além do que a parteira pode prover, condicionando que a mulher possa ter o melhor dos dois mundos.”, salienta Naoli.
Um parto respeitoso é aquele que coloca a mulher no centro do processo, considerando seus desejos, suas necessidades e suas possibilidades. Para garantir esse cenário, são fundamentais a participação e a colaboração de vários profissionais da saúde, desde médicos e enfermeiros até doulas e parteiras.
Com a visão integrada e centrada na mulher, podemos proporcionar experiências mais positivas e respeitosas para todas as mães e seus bebês no momento sagrado que é o nascimento.
FONTES
Luciana Aparecida Palharini, Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa
“Gênero, história e medicalização do parto: a exposição “Mulheres e práticas de saúde Link:https://www.scielo.br/j/hcsm/a/tVY7ZqQTFNHTCbSLLT8nnJn/#
Patrícia Espanhol Cabral, Kerilyn Minarini Vieira Cabral, Pulo Junior Andreatta de Sousa
“A ENFERMAGEM OBSTETRÍCIA E DESAFIOS NO PARTO HUMANIZADO”
Link:https://revistas.unipacto.com.br/storage/publicacoes/2022/1045_a_enfermagem_obstetricia_e_desafios_no_parto_humanizado.pdf
“Perfil da Enfermagem no Brasil”
Link:https://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/blocoBr/QUADRO%20RESUMO_Brasil_Final.pdf
Daniela Oliveira, GÊNERO E CLASSE: AS MULHERES NA ENFERMAGEM
Link: https://contrapontodigital.pucsp.br/noticias/genero-e-classe-mulheres-na-enfermagem
Mulheres na Medicina: desafios, evoluções e conquistas
Link:https://educacaomedica.afya.com.br/blog/mulheres-na-medicina-desafios-evolucoes-e-conquistas?utm_source=duckduckgo.com&utm_medium=referrer