Ao olharmos a história, vemos que nem sempre o patriarcado existiu nas sociedades que viveram nesta terra. Geralmente, quando representamos a pré-história, vemos imagens de homens carregando mulheres pelos cabelos, como se nosso passado houvesse sido marcado pela dominação e pela violência. No entanto, há inúmeros indícios de sociedades que veneravam a força feminina e viviam em harmonia entre gêneros, antes da revolução agrícola do neolítico.
Na pré-história Europeia, antes da construção de cidades e civilizações, a natureza e as mulheres eram sagradas e reverenciadas. As mulheres eram valorizadas e celebradas como Deusas. A fertilidade e a capacidade de gerar a vida eram valores centrais. Nessas sociedades, homens e mulheres viviam em parceria, de forma igualitária, sem hierarquias e distinções. Esculturas antigas de vulvas e corpos femininos férteis, assim como escavações arqueológicas, demonstram e reforçam essa visão. Depois de algum tempo vivendo assim, esses grupos começaram a domesticar plantas e animais, a praticar o sedentarismo e a divisão sexual do trabalho. A natureza passou a ser percebida como uma força misteriosa e negativa, que deveria ser dominada com o uso da violência.
A ciência tenta explicar a história humana com discursos biologizantes que, no mais, tentam aplicar nossa visão de mundo atual ao passado, atribuindo a dominação masculina a algo natural e inevitável. Quando afirma-se que os homens são polígamos “por natureza” ou que são agressivos e dominadores “por natureza”, utilizando a observação do comportamento de machos (machos alfa primatas), estamos de fato usando a ciência para justificar nossas visões e práticas culturais, já que essas relações não são universais nem entre animais — visto que há na fauna uma diversidade de sociedades que vivem em cooperação (formigas, abelhas, bonobos), matriarcais (elefantes), relacionamentos poligâmicos (alguns primatas) e monogâmicos (pinguins e alguns tipos de pássaros) — ou mesmo entre todas as sociedades humanas, já que nem em todos grupos humanos homens e mulheres se comportam da mesma maneira e possuem os mesmos papéis. A biologia não é um fator determinante na nossa cultura, como estudos antropológicos há tempos demonstram.
Na cultura judaico-cristã que herdamos, as mulheres têm sido historicamente representadas ou como pecadoras e de natureza traiçoeira (Eva) ou como Santas (Virgem Maria, arquétipo da mãe doadora). Na idade média, o corpo da mulher era visto como morada de Deus (quando a mulher estava grávida) e também do diabo (as mulheres provocavam a lascívia nos homens). A sexualidade era vista como uma força a ser reprimida, especialmente a das mulheres, causadoras da corrupção dos homens. Na mesma época, as florestas foram sistematicamente destruídas por serem locais perigosos, de cultos pagãos e poder femininos. Havia uma associação entre a dominação feminina e a dominação da natureza. Ambas eram consideradas perigosas e traiçoeiras.
No período de construção da ciência moderna na Europa, foi instaurada a Inquisição e o Tribunal do Santo Ofício. Nessa instituição, as mulheres conhecedoras das plantas, das curas, que faziam poções e veneravam a natureza eram perseguidas como feiticeiras, bruxas e eram torturadas e queimadas. A caça às bruxas matou publicamente milhares de mulheres, silenciou suas vozes e levou às sombras um conhecimento ancestral transmitido por gerações.
Depois desse período as mulheres estavam domesticadas, amedrontadas. O Tribunal do Santo Ofício foi trazido também para as colônias ibéricas (incluindo Brasil e países da América Latina) onde perseguiu crenças e formas de vida divergentes do catolicismo. O estabelecimento do cristianismo como religião do Estado foi um momento de reforço, poder e autoridade do patriarcado e enfraquecimento do poder feminino. Às mulheres cabia somente o papel de esposas e mães, tementes à Deus e obedientes aos homens.
Nessa jornada como mulheres, sentimos o peso dessa história. Nossas antepassadas sofreram por séculos essa opressão que ainda hoje reverbera dentro de nós. Se hoje temos muitas conquistas e direitos, foi devido ao trabalho de muitas mulheres que vieram antes de nós e abriram caminhos para que pudéssemos trilhar. Elas deixaram o caminho mais suave, permitindo que hoje pudéssemos escolher quem amar e com quem casar, que pudéssemos ter acesso ao estudo e ao trabalho, que pudéssemos escolher pela maternidade e não vivenciá-la de forma compulsória. Ainda temos uma longa caminhada de luta pela libertação de nossos corpos, de nossas emoções, de nossa sexualidade e de uma vida verdadeiramente livre da cultura machista e dessa sociedade capitalista, injusta e violenta que vivemos. Honrando o caminho das que vieram antes de nós e de mãos dadas com as irmãs que estão ao nosso lado, a caminhada é mais fácil.
O cristianismo nos deixou uma percepção do corpo como parte de uma natureza que precisa ser domesticada. Na visão cristã, o corpo é negado, deve ser suspendido, punido e a busca espiritual é completa ao transcendê-lo. Muitas religiões monoteístas compartilham essa mesma visão, do corpo como “prisão da alma”. Além disso, se temos essa herança cultural cristã, com o surgimento e expansão do capitalismo e da cultura de massas, o corpo passa a ser percebido como mercadoria. O corpo feminino é então utilizado como meio para vender produtos e modos de vida. O corpo, um dia sagrado, depois hostilizado, passa a ser somente um objeto. A ciência, por outro lado, nos traz outras percepções sobre o corpo, nem como prisão ou como objeto, mas como máquina. O corpo é estudado fragmentado, reduzido. Percebido em suas partes mas sem conectar com o todo e com tudo o que somos.
Todas essas percepções sobre nosso corpo nos atravessam e precisamos olhar a partir de um outro ponto de vista, em outra direção. Nesse sentido, nosso convite é o de percebermos o corpo não como máquina, não como objeto ou como natureza a ser dominada e transcendida, mas reconhecendo sua natureza sagrada. É com ele que podemos viajar, experimentar o êxtase. Ele que nos permite tocar, sentir, amar, peregrinar, conhecer, dançar, orar. O corpo é o veículo e o motor de toda a nossa experiência nessa terra. Precisamos superar as dualidades que atravessam nossos corpos: da divisão do corpo como natureza (e inferior) e a mente como cultura (e superior), dos homens como racionais e as mulheres como naturais. Todos os seres dessa terra tem uma conexão com todos os corpos celestes, com as galáxias e estrelas. Somos feitos da mesma matéria das estrelas e temos todos os elementos em nós. Precisamos honrar e reconhecer esse universo corpo-terra que somos. Precisamos cuidar e proteger nosso corpo assim como cuidar e proteger o corpo da terra. Somos parte dela, ela é parte de nós.
A Mandala Lunar foi criada com esse propósito, cultivar valores de cuidado e de amor e facilitar essa conexão com nosso território corpo-terra. Com o objetivo de difundir conhecimentos femininos, a partir do reconhecimento e valorização dos nossos saberes, antigos e novos, e assim criar um novo futuro para todas nós, honrando a diversidade e os saberes de todas as culturas.
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Esse texto foi escrito por Naíla Andrade para a Mandala Lunar 2018. A Mandala Lunar conta também com muitos conteúdos inspiradores sobre os ciclos da natureza, mulheres, saúde, entre outros.
Foto: Ieve Holthausen
4 Comentários
Célia Ferreira da Silva
Muito bom esse texto, esclarecedor.
Luana
Grata pela partilha🙏🌺
Cristiane Freitas
Conhecer o sagrado feminino me resgatou e me relembrou da minha essência natural, divina e sagrada que sempre esteve em mim! Foi como se o céu se abrisse novamente!! Seguimos juntas, pelas que já se foram, por nós e pelas que virão…
Liz
É tão libertador ler algo que nos fala que devemos nos valorizar que só palavras já parecem espantar muitos medos 🙂