« Voltar para o Blog

Pequeno manual de insubordinação a consultas ginecológicas

pela ginecologista Halana Faria
(http://halanafaria.med.br/)

É cada vez maior o número de pessoas dando-se conta do pouco que conhecem sobre seu território mais íntimo que é seu corpo. Sentem-se lesadas no direito a informações e infantilizadas em relações paternalistas com profissionais de saúde, nas quais não conseguem participar da tomada de decisões. Aqui está uma pequena lista de questões que você precisa entender para ter mais autonomia sobre seu corpo e sua vida.

> Quando for a uma consulta (inclusive as ginecológicas) procure levar uma lista de questões/dúvidas. Você é quem deve pautá-la. Se não tiver dúvidas respondidas, sentir que foi infantilizada, ou que não teve sua sexualidade respeitada pense em escrever ao plano de saúde, à ouvidoria do SUS, aos grupos de organizados na sua cidade. Vamos convidar profissionais e gestores a reverem sua prática e a assistência a nossa saúde?

> Exames ‘de rotina’, ‘check-ups’ e afins devem ser solicitados após explicitadas suas necessidades e seus riscos. Realizar ultrassons transvaginais, de mama, de tireóide, colcoscopia sem que haja indicação, pode gerar danos. Conheça as indicações de periodicidade de exames de rastreio, ou seja aqueles realizados mesmo quando não temos queixas.

> O exame físico é importante e deve ser realizado em local adequado, se for em instituição de ensino você deve ser informada e questionada sobre a presença de mais pessoas na sala. Entende-se que profissionais de saúde devam receber treinamento mas não às custas de sentir-se usada como material didático.

> Em muitos locais pessoas deixam de ser avaliadas por não haver sala com perneira ou estribos. O exame ginecológico pode ser feito em qualquer maca. 

> O corpo é seu e você tem direito à oportunidade de aprimorar seu conhecimento de si. Havendo ou não alterações, você deveria ter acesso a seu colo do útero, parede da vagina e secreções. Peça um espelho ou leve o seu para não perder a oportunidade de observar-se.

> Pomadas para tratar corrimentos que reúnem antibiótico e antifúngico demonstram que a causa do mesmo não foi diagnosticada.  Além disso, podem alterar sua flora vaginal. Em situações de desequilíbrio, fungos ou bactérias que são parte da microbiota vaginal, podem proliferar. Observe em que período do ciclo menstrual essas alterações aparecem. Perceba a relação com sua alimentação, com relações sexuais, com seu ritmo intestinal. Em geral consumo excessivo de açúcares e carboidratos simples, constipação, suspensão da menstruação (por uso de pílula combinada sem pausa ou DIU Mirena) aumentam a acidez vaginal e também a candidíase, que se apresenta como uma secreção grumosa tipo leite coalhado, coceira e vermelhidão em geral antes da menstruação. Já as vaginoses bacterianas costumam vir depois da menstruação e são mais comuns em pessoas com fluxo menstrual aumentado, como usuárias de DIU de cobre. Tem odor forte que piora após menstruação e a secreção é mais leitosa e acinzentada. Há também secreções que são fisiológicas e nos ajudam a perceber nosso ciclo, estas podem variar de um aspecto mais leitoso, clara de ovo a mais grumosa. Ela pode ser bem abundante e perceptível no papel higiênico e na calcinha. A atrofia vaginal na menopausa pode ser uma causa importante de proliferação de microorganismos.  No mais, para a vagina ser saudável é preciso alimentar-se bem, usar roupas íntimas leves que permitam respirar, dormir sem calcinha sempre que possível, usar camisinha nas relações), tomar sol na vulva. Evitar depilações quando elas causam irritação, preferir somente aparar os pelos. Algumas gotas de óleo essencial de Melaleuca (5 a 10 gotas) diluídas em água para lavar a vulva e internamente a vagina (com ajuda de uma seringa), por 5 a 7 dias funciona como excelente antisséptico e tratamento de candidíase. No caso de vaginose pode-se tentar somar a essa diluição uma colher de chá de vinagre de maçã e usar da mesma forma. Repor lactobacillus vaginais nas situações de alterações de flora vaginal recorrente pode ser uma boa ideia. Aliás, a manutenção de boa microbiota intestinal através do consumo de fermentados é essencial para a manutenção da saúde. Agora, se você percebe que a secreção não melhora com medidas em casa, tem desconforto nas relações sexuais, percebe que a secreção sai da uretra ou o odor torna-se forte, é importante procurar um profissional na unidade básica de saúde.

> “Ferida no colo do útero”? – o colo do útero passa por um processo fisiológico de eversão da sua camada mais interna para fora do orifício, que pode ser enxergada quando é feito exame ginecológico como uma área mais avermelhada.  Trata-se de achado comum frequentemente diagnosticado como “ferida”, para o qual orienta-se ‘cauterização’. No entanto, só deveria ser tratada quando há queixa de sangramento  durante a relação sexual com penetração. O que raramente se comenta é que pode ser agravado por anticoncepcional oral. Na próxima visita ao/à profissional de saúde, se você teve diagnóstico de ‘ferida’, peça para ver com espelho e acompanhe sua modificação durante o ciclo menstrual e conforme você usa ou deixa de usar contracepção hormonal. Há fitoterápicos como o barbatimão que podem melhorar sua ocorrência. Outras alterações como verrugas causadas por HPV também podem acometer o colo do útero e interior da vagina e demandar uma cauterização.  Mas peça para que o profissional esclareça sobre a origem e causa do que está sendo diagnosticado.

> Irregularidade menstrual – muitas pessoas nos procuram desejando parar seu anticoncepcional oral inicialmente prescrito para tratar seus “ovários policísticos” e mantidos porque pouco discute-se alternativas à contracepção hormonal. A maioria delas são diagnosticadas ainda na puberdade, quando nem mesmo houve tempo para a maturação das conexões neuro-hormonais que controlam o ciclo menstrual. Encontrar cistos no ovário em ultrassons de rotina (que na maioria das vezes nem deveria ter sido realizado) também não diagnostica SOP (Síndrome do Ovário Policístico). Esse diagnóstico deveria estar reservado para quem  passa meses sem menstruar, ou seja, que têm ciclos sem ovulação e além disso tem imagem de ultrassom compatível ou sinais físicos de excesso de hormônios masculinos (como excesso de pelos e peso e acne). O tratamento dessa disfunção metabólica envolve uma abordagem sistêmica como reeducação alimentar, atividades físicas (como o yoga) e fitoterápicos. Usar somente anticoncepcional é jogar o problema para debaixo do tapete. Você pode até ter a impressão de estar tudo bem porque está menstruando, mas a longo prazo o anticoncepcional oral pode piorar a resistência à insulina, causa básica da síndrome. Para saber se seu ciclo é realmente irregular, queixa muito comumente transformada em diagnóstico de SOP, você precisa compreender seu ciclo. Acompanhá-lo com gráficos impressos ou com aplicativos. Se couber na sua rotina, faça também um acompanhamento do muco cervical e temperatura com o método sintotérmico. É possível ter uma boa noção sobre a ação dos hormônios estrogênio e progesterona durante o seu ciclo com esse controle diário. Importante: Além de reduzir acne e pêlos, a pílula é prescrita para evitarmos o super-crescimento do endométrio o que pode levar a câncer no futuro. Porém, tratar adequadamente a SOP e voltar a ciclar regularmente vai deixar de aumentar esse risco. 

> Cólicas menstruais podem ser um reflexo de sua vida corrida, atarefada e com pouco tempo para cuidar de si. Podem estar agravadas nas pessoas com tendência à constipação. Pode aparecer como um pedido de ajuda para quem se encontra em relações violentas e sofre assédio no trabalho ou em casa. Apesar da complexidade de suas causas, tem sido muito rapidamente transformada em suspeita de endometriose. Doença de origem ainda bastante controversa (inclusive com suspeita de implicação de fatores ambientais como a dioxina) na qual as células de dentro do útero acabam indo parar em diversos lugares da pelve. É compreensível que seja uma preocupação médica porque a endometriose pode agravar-se gerando comprometimento de órgãos internos. Mas também é preciso entender que a forma(ta)ção médica voltada para um olhar estreito sobre as mulheres e um entendimento sobre seus corpos como essencialmente patológicos, pode precipitar uma suspeita diagnóstica sem que outras causas sejam antes aventadas. Você mesma precisa entender melhor sobre a natureza das suas dores. Inclusive para guiar o/a profissional que venha a auxiliá-la. Procure anotar no seu gráfico, aplicativo ou agenda em que período as cólicas pioram. É assim todos os meses ou quando você está de férias,de pernas para o ar ou apaixonada elas melhoram? Que recursos você costuma utilizar para seu alívio? Bolsa de água quente? Fitoterápicos como mil-folhas, alfavaca anisada, tanaceto? Analgésicos? Nada alivia e precisa recorrer a emergência para medicação endovenosa? Antes de pensar na suspensão de menstruação com uso de anticoncepcional contínuo talvez seja interessante observar como é o padrão de dor e o padrão da menstruação.  Focar em atividades físicas que favoreçam a movimentação da pelve (yoga, dança do ventre são ótimas opções), tentar o uso dos fitoterápicos acima, buscar a resolução de conflitos emocionais. Aí então, se depois de alguns meses de observação e cuidado de si não houver melhora, é interessante procurar uma unidade básica de saúde para avaliação.

Quando devo me preocupar com endometriose e solicitar que seja investigada? Quando a cólica piora a cada ciclo, quando há dor na relação sexual com penetração peniana, dedos, dildos, quando tenho cistites repetidas sem evidência de bactérias na urina, quando tenho dor para evacuar durante a menstruação.

Esse texto não é uma incitação à fuga dos consultórios médicos. Mas sim um convite para que as mulheres e pessoas que necessitam atendimento ginecológico observem-se, busquem cuidar de si mesmas e entendam seu papel político em demandar acesso e qualidade na atenção à sua saúde.

Sobre Halana Faria:
Me chamo Halana Faria sou médica ginecologista e mãe. Escolhi como ofício cuidar de pessoas, sua inteireza e complexidade, além de ajudá-las no caminho de conhecimento de si e resistência contra o processo crescente de medicalização de suas vidas. Sou formada em medicina pela UFSC, fiz residência em Ginecologia e Obstetrícia na Maternidade Carmela Dutra (SC) e especialização em acupuntura pelo IPE/SC. Sou mestra pela Faculdade de Saúde Pública/USP. O Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde foi o espaço que me ensinou ser possível e necessário oferecer outro tipo de atendimento à  saúde sexual e reprodutiva. Atuo em Florianópolis em consultório próprio e realizando palestras e rodas em escolas públicas e também atendo remotamente.
CRM/SC 14241
CRM/SP 165760

Comentar