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Performance e ritualização menstrual na produção de novos significados

por Laísla Dantas Chagas

Não é de hoje que novos debates e práticas, com o intento de ressignificar a menstruação, crescem e se tornam cada vez mais públicas, trazendo assim visibilidade a um processo natural e orgânico do corpo feminino, que podem ser vistos como uma celebração à ciclicidade, ou como um movimento de enfrentamento, praticado por muitas como “ativismo menstrual”.

Práticas, como por exemplo recolher o sangue menstrual e depositar na terra, e discussões sobre menstruação que se inspiram em resíduos de formas rituais passadas e (re)criam rituais para combater tabus, possibilita uma ressignificação da percepção sobre o sangue menstrual, realocando a menstruação de um ambiente privado para uma experiência compartilhada, promovendo, inclusive, debates políticos mais amplos.

O potencial simbólico do sangue menstrual em diversas sociedades tem sido amplamente teorizado e interpretado no contexto de rituais, uma vez que seu simbolismo vem carregado predominantemente de tabus que apontam para um lugar místico de determinações e proibições. O tabu em cima dos nossos corpos tem um papel primordial na interdição do sexo feminino. Nesse sentido o tabu menstrual foi e tem sido um eficaz mecanismo para nos privar de espaços de poder e conhecimento.

Na cultura ocidental, por exemplo, essa percepção negativa da menstruação tem uma longa história. Em 1805, por exemplo, Jacques-Louis Moreau, médico e anatomista francês, escreve um livro intitulado “História natural da mulher”, no qual trata sobre a higiene física e moral que deve ser adotada nos diferentes períodos da vida da mulher. São, assim, fornecidos os argumentos – pela medicina, anatomia, biologia e psicologia – à transposição de demarcações morais para o mundo da corporalidade com o intuito de estabelecer justificativas de hierarquizações da sociedade moderna ocidental. Vista, em nossa sociedade como um estorvo, uma sangria inútil que se associa a uma “poluição simbólica”, o discurso propagado é que o sangue menstrual deve ser escondido/negado.

Tal perspectiva assume uma intenção de mudança ao final dos anos 1960, com movimentos que propõem novas reflexões e diálogos sobre o corpo feminino, gestação, menstruação, autonomia e seu efeito político para as mulheres, muitas vezes utilizando-se da performance, como o projeto de Red Flag, de Judy Chicago, em 1971, considerada como a primeira imagem que retrata a menstruação na arte contemporânea ocidental, a fotografia é um close-up da artista removendo um absorvente interno da sua vagina. Surgem, assim, rituais contemporâneos associados ao sangue menstrual cujas performances possuem um potencial simbólico de transformação de discurso e percepção corpórea.

Em 2009, Maria Eugenia Matricari, em sua apresentação “Pintura Corporal de Guerra” retira, assim como Judy Chicago, o sangue menstrual da invisibilidade. Ela fala sobre a performance no seu site: Nua, entro na galeria. Passo alguns minutos me concentrando. Retiro, de dentro da vagina, um coletor menstrual. Mergulho os dedos médio e anular no sangue, traço uma linha horizontal sob os olhos. Pinto o rosto e traço uma linha vertical pelo tronco, outra horizontal pelos seios. Eu uso os dedos para carimbar gotas de sangue que fluem pelo lado direito e esquerdo do peito. Coloco o resto da menstruação na boca, provo o endométrio e deixo o sangue fluir da boca para o torso até chegar na vagina e pingar no chão.

Uma experiência, então, é provocada, afetando a percepção que a sociedade tem em relação ao sangue menstrual, possibilitando a criação de uma nova rede de significados, atuando na reconfiguração da experiência de menstruar.

É preciso pensar a sociedade em movimento, algumas simbologias adjacentes a rituais e performances atuam na experiência social e possuem capacidade de produzir novos significados e por em movimento os discursos hegemônicos e desestabiliza relações determinadas pela estrutura social. Seu potencial é transformador na medida em que gera tensões e reformulações de ordens estabelecidas. Assim, a performance ou ritualização menstrual nos convida a observar como se movimenta esse aspecto sociopolítico na vida da mulher, evidenciando suas contradições e transformações.

Algumas narrativas por trás da ritualização com o sangue menstrual é o entendimento de que essa ação ritualizada coloca em prática a relação mútua entre as mulheres e a natureza, ressignifica o nojo e o tabu associado à menstruação e promove uma relação mais saudável com o próprio corpo e seus processos fisiológicos. Segundo Lévi-Strauss (2008), os símbolos e suas relações não constituem apenas um conjunto de classificações cognitivas para ordenar o universo. São também, e talvez principalmente, um conjunto de meios evocadores para suscitar, canalizar e domesticar emoções poderosas. “A pessoa inteira é implicada de modo existencial.” A função simbólica interpõe-se, assim, necessariamente entre o mundo pensado e o mundo vivido.

A exposição do sangue menstrual, no contexto de ritual e performance, rompe com diversas convenções simbólicas estruturais que mantém um sangue menstrual como um assunto privado, “inexistente” e intocável, perspectiva esta que remonta o surgimento dessas performances na sociedade contemporânea como antiestrutura. O uso do sangue menstrual dessa forma, cujo apelo estético é também político, faz parte de um movimento maior denominado de ativismo menstrual, sob o qual se articulam questões de gênero, classe e libertação do corpo das mulheres, intersecções étnico-raciais, além de dispositivos mais ecológicos para lidar com a menstruação. Esses movimentos atuais colocam o sangue menstrual visível e possibilita sua ressignificação, atuam na reconfiguração da experiência de menstruar e insere no debate político e econômico importantes pautas para toda a sociedade.

REFERENCIAL TEÓRICO:

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2008

MANICA, Daniela; RIOS, Clarice. Sangue (in)visível: performances menstruais e arte corporal. Vibrante: Antropologia Brasileira Virtual, vol. 19, 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/vb/a/5mQf6gcVLKfnMXN5VNh5tXQ/?lang=en >. Acesso em: 19, abril 2022.

ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001. TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 2013.

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