O que cada uma de nós sonhava quando criança? E com o que será que as crianças ao nosso redor têm sonhado?
Os sonhos são portais para o mundo interno, as imagens que habitam nossa alma, mas será que estamos conseguindo mostrar às crianças o quanto essa experiência é importante? Desde pequenas, elas podem aprender a se conectar com a sua intuição e criatividade, e o modo como se relacionam com seus sonhos pode fazer diferença. Quando não perguntamos às crianças sobre os seus sonhos, a tendência é que deixem de ser contados.
Assim como os adultos, as crianças também sonham — e por vezes essas imagens trazem conteúdos carregados de emoções complexas, que elas sequer sabem nomear. Até os cinco anos de idade, as cenas oníricas vivenciadas pelas crianças costumam ter poucos elementos, mas os sonhos se expandem e se tornam mais complexos junto com o crescimento do corpo. A partir dos seis anos, começam a se expressar com uma trama maior, na qual os personagens se movimentam mais, constroem diálogos, experimentam emoções variadas e revivem episódios que estão na sua memória autobiográfica. Assim, vão se transformando em protagonistas de tramas coloridas e complicadas, tendo sonhos cada vez mais intensos, inusitados, mirabolantes, angustiantes, criativos e engraçados.
As crianças estão muito próximas das imagens do inconsciente coletivo e com a personalidade ainda em formação, portanto, imagens conectadas a temas arquetípicos e mitológicos — sereias, ondas gigantes, dragões, cobras, baleias e uma infinidade de seres — aparecem com mais frequência do que nos sonhos de adultos. Os contos de fadas, por exemplo, trazem diversas imagens arquetípicas que encantam as crianças porque expressam conteúdos que estão vivos na psique coletiva, sendo assim, as auxiliam na elaboração de muitas experiências.
Michael Fordham, psiquiatra infantil e analista junguiano, nos diz que, na primeira infância, objetos reais e fantasia não se distinguem muito um do outro, por esse motivo, muitas vezes as crianças se assustam intensamente com os conteúdos dos sonhos, despertam chorosas, confundindo a experiência da vigília com a experiência onírica. A tendência é que as imagens se misturem com os devaneios e fantasias cotidianos comuns na infância. Por isso, é mais indicado que, na exploração das imagens oníricas junto com elas, não se proponham associações verbais, como é muito sugerido e praticado por adultos, mas a partir de brincadeiras, desenhos e dramatizações lúdicas em que as crianças possam representar livremente, de forma vivencial, os conflitos emocionais e os caminhos apresentados pelos sonhos. Assim, as associações vão se dando de forma natural, no seu próprio modo e tempo — por meio da manifestação de seus desejos: “até onde quero e consigo ir ao encontro com os afetos mobilizados por esse sonho?”. Claro que essa não é uma reflexão clara e racional, mas elas costumam dar sinais significativos de seus limites emocionais.
É importante que nós, adultas, ao incentivarmos essa relação e nos colocarmos como testemunhas de apoio, tenhamos cautela e sensibilidade para que elas próprias apontem o caminho. O mais importante é que tenhamos uma presença empática que atue como um continente de acolhimento e validação das emoções, deixando-nos, também, ser afetadas pelas imagens compartilhadas por elas.
Em crianças menores, a mistura dos conteúdos dos sonhos com a vigília é muito comum, a discriminação é tênue. Já na transição para a adolescência, entre os nove e treze anos, a diferença já está bem colocada, e a tendência é que comecem a aparecer imagens ligadas a iniciações, à separação das figuras familiares, à exploração do universo coletivo e social, ao enfrentamento de figuras autoritárias, à constituição de laços com pares da mesma idade e à exploração do corpo e da sexualidade, muito comuns e saudáveis nessa fase.
Carl Jung, psiquiatra e criador da psicologia analítica, nos mostra que as imagens de monstros que aparecem nos sonhos infantis representam a face instintiva da psique. Sendo assim, é como se a criança descesse, por meio dos sonhos, às camadas mais profundas do inconsciente, para se conectar com o próprio corpo, mais especificamente com a sua consciência corporal na busca por integração dessas forças instintivas. Porém, a interpretação não costuma ser necessária ou relevante para as crianças. Mais uma vez, não se trata de nomear e atribuir significados por elas, mas de abrir espaço para a expressão em um tempo possível e próprio. Na maioria das vezes, oferecer uma escuta atenta já traz alívio da pressão emocional vivenciada no sonho.
No ano passado, minha filha (aos seis anos) sonhou com uma cobra azul, gigante e fosforescente, nadando no meio das águas da enchente que se espalhava por Porto Alegre. Apesar de a água não ter chegado à nossa casa, atingiu o nosso espaço de trabalho, as casas das avós, de profissionais da escola, de famílias amigas e as paisagens naturais e os espaços que faziam parte do nosso cotidiano afetivo. Antes de pensar em qualquer movimento de proposição, como uma amplificação por intermédio de mitos e contos com cobras azuis e gigantes, deixamos a cobra “falar”. E ela falou com vigor. Falou por meio dos desenhos que ela foi criando, ganhou nome e virou personagem principal de uma brincadeira de dramatização colocando seu corpo envolto por um tecido azul brilhante, usado na mesa da festa de aniversário de quatro anos, que estava guardado em uma gaveta e foi reencontrado por ela. A cobra azul retornou em outras visitas, virou embarcação nas águas, guardiã de pedras brilhantes, cantora, nave no céu, por vezes amigável e falante, em outras nem tanto, sendo tema de alguns cafés da manhã. Esses movimentos simples de expressão colaboraram para que as associações fossem surgindo espontaneamente, gerando assimilações importantes dessa experiência coletiva e traumática que foi a enchente em nosso Estado.
Os desafios emocionais mais impactantes que as crianças enfrentam na infância podem estabelecer padrões de comportamento que atuarão no decorrer da vida, muitas vezes sem que tenhamos consciência deles. Dessa forma, Jung afirmava que os sonhos infantis podem ser um portal de acesso e de conhecimento no nascimento desses padrões, nos auxiliando com possibilidades de transformação ainda na infância. Além disso, quando uma criança aprende que os sonhos têm valor dentro da sua família e comunidade, a tendência é que ela siga dando atenção a eles, desenvolvendo o hábito de “escutar” o seu mundo interno como um gesto incorporado e relevante para a vida inteira, além de desenvolver um sentimento de intimidade e confiança com quem a escuta e assiste nas experiências de exploração. Ao sentir que o seu mundo interno tem espaço para se expressar, a relação com os conteúdos do inconsciente torna-se um pouco mais “fluída”.
Jung também afirmava que os sonhos da infância que trazemos para a vida adulta não costumam ser comuns, normalmente são mantidos vivos em nossa memória porque contêm sínteses de períodos importantes. De início, podemos observá-los e não compreender os motivos da sua permanência, mas, com uma análise mais profunda das imagens e da nossa história de vida, encontram-se pistas importantes. Alguns conteúdos permanecem em nossa psique porque um dia foram necessários para o nosso equilíbrio emocional interno. E sob certas condições de vida, nós, adultas, podemos ter sonhos que se aproximam muito dos sonhos tipicamente infantis.
Um campo de produção artística que nos auxilia muito na criação das nossas crianças é a literatura. A contação de histórias é um instrumento poderoso que facilita a conexão com as emoções e a elaboração de experiências. Se refletirmos sobre o movimento de ouvir e contar histórias, podemos compreender que o gesto de imaginar outros mundos além deste, como está colocado culturalmente, é uma forma de não sucumbir à ideia de que isto que enxergamos é o único modo de existir. A experiência de sonhar e contar histórias possibilita que entremos em contato com novas narrativas individuais e coletivas, a partir do desejo de imaginação.
Segundo o neurocientista Sidarta Ribeiro, o sonho é a imaginação sem freio nem controle, pronta para temer, criar, perder e encontrar. E construir um sonhário, dar atenção e valor aos sonhos, é uma forma de resgatar algo que é ancestral. Para ele, as crianças têm papel importante nesse resgate, pois a capacidade de sonhar das crianças é menos limitada pelo que já foi e mais aberta para o que virá.
Atualmente, existem diversos livros infantis com narrativas sensíveis, cheios de metáforas e poesia, profundamente imaginativos e bonitos, sobre o universo onírico para lermos junto às nossas crianças:
Além desses três, também existem outros doze livros infantis que indico, são eles:
Os sonhos estão sempre nos dando pistas de temas que podemos explorar por meio de brincadeiras, experiências artísticas e contação de histórias. Então, fica o convite, entre junto sempre que for convocada: brinque, desenhe, dramatize os personagens, sejam eles “bonzinhos” ou “ameaçadores”. E também deixe a criança quietinha, sem interferências e interrupções quando estiver dentro de seu silêncio introspectivo. Procure ser colo e proteção quando os monstros resolverem visitar e o choro pedir passagem no meio da noite. Se as crianças são as nossas sementes na construção de um futuro de bem-viver, faz todo sentido que as ajudemos a escutar os seus sonhos e os das pessoas que a cercam. Há sonhos da nossa infância que nos acompanham por uma vida inteira como retratos preciosos e bússolas-guias.
Fico por aqui, desejosa de que resgatemos o hábito de escutar os sonhos de nossas crianças, reacendendo o fogo da intimidade onírica dentro de nossas casas, escolas e comunidades, abrindo rachaduras na cultura ocidental moderna e apostando na imaginação como flecha para a construção de um futuro mais coletivo.
Silvia Andrade Zonatto – @silviazonatto.psi
Psicóloga (UFRGS), Psicoterapeuta corporal junguiana, Cocriadora do Rubra Terra – Eco Refúgio e Autora do Sonhário da Mandala Lunar.
Referências
FORDHAM, M. A criança como indivíduo. Trad. Marta Rosas. São Paulo: Cultrix, 1994.
JUNG, C. G. Seminários de sonhos de crianças. Trad. Lorena Kim Richter. Petrópolis: Vozes, 2011.