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Sonhos: o oposto da vigília, mas não apenas

Entre os diversos efeitos da colonialidade, dos mais perversos aos mais sutis, a cosmovisão dos povos modernos trouxe aos sonhos um sentido difícil de se desvencilhar: os sonhos (noturnos) seriam uma experiência derivada da realidade (diurna). Em relação aos acontecimentos “reais”, os sonhos seriam entendidos como acontecimentos de segunda importância. Essa forma de interpretar a experiência onírica data de Aristóteles e se tornou senso comum nas sociedades modernas. Mas essa não é a única forma de entender os sonhos.

Há muitos esforços entre antropólogos contemporâneos para valorizar e difundir cosmovisões de povos originários. Elas, por sua vez, apresentam uma série de outras relações e significações para as experiências da vida, incluindo a onírica. O contexto cultural do Renascimento europeu trouxe, junto com o movimento iluminista, um sentido próprio para o sonho que, desde então, tem se atualizado, mas sem perder sua diferenciação fundamental. 

O sonho foi, desde então, localizado como um fenômeno interno, individual, uma movimentação daquilo que mais tarde, no século XX, foi chamado de “inconsciente”, ou mesmo de “psique”. Tudo que se passa dentro da longa noite de sono seria efeito do abandono das nossas ferramentas racionais (operadas somente durante a vigília). O operador noturno seria o simbólico, e, tomando o sonho como símbolo, para que ele se torne significado, exigem-se as interpretações mais variadas — orientadas para um lado ou para outro, a depender da corrente psicológica de cada analista. De qualquer modo, a separação básica permanece: os sonhos são acontecimentos suprarracionais ou surreais, derivados e ao mesmo tempo opostos às operações racionais e reais da vigília. Como num jogo de espelhos no qual a imagem original ganha valor e mais importância em relação ao seu reflexo, fugidio e incontrolável. O real é o acontecimento diurno, e o noturno é, no máximo, uma referência distorcida dos fenômenos reais. 

Para evidenciar uma forma diversa de entender os sonhos, retomamos aqui parte de um relato feito pela antropóloga Nastassja Martin¹ sobre a sua etnografia com uma família Even, população originária da península de Kamtchátka, no território da Rússia. 

Na convivência com Dária, ela percebe um comportamento diverso do esperado com a experiência onírica. Diferentemente da expectativa ocidental de como “valorizar” os sonhos, Dária não compartilha facilmente a sua memória da noite, e, na interpretação de Martin, principalmente por dois motivos. Em primeiro lugar, porque os sonhos que Martin chama de “projetivos” não interessam para os Even. Ou seja, os sonhos que refletem e reelaboram as experiências diurnas de um indivíduo são sonhos desimportantes, e nem merecem ser chamados de “sonhos” — nada seria mais estranho à tradição psicanalítica. 

Na visão de Dária, que Martin posiciona como compreensão dos Even, essas experiências oníricas projetivas são desinteressantes porque nada acontece ali. O importante é conseguir sonhar outro tipo de sonho, além do projetivo: o sonho-encontro, no qual é possível viver outra temporalidade e espacialidade, habitada pelos mortos e pelos animais da floresta. Nesses sonhos, é possível conversar com aqueles seres aos quais não temos acesso durante a vigília e aprender com eles. “As crianças vão à escola quando sonham”, repete Martin a frase do antropólogo americano Alfred Irving Hallowell. Ter esses sonhos, contudo, não é fácil. É preciso cultivar toda uma educação do corpo e da alma para conseguir ter essa experiência — arte para a qual antes havia pessoas que dedicavam a vida para se aperfeiçoar, os xamãs, e agora é preciso aprender a sonhar sem eles.

Formas diversas de pensar os sonhos como tecnologias de relação e de deslocamento também estão presentes em cosmologias de povos originários brasileiros, como, por exemplo, os Krenak e os Yanomami. Para conhecê-las, recomendamos escutar as palavras de Edson Krenak e de Davi Kopenawa.

Os sonhos podem ser, então, pensados como fenômenos opostos aos da vigília, mas não apenas – para utilizar esse sintagma da antropóloga peruana Marisol de la Cadena². Com ele, evidenciamos as conexões parciais com as quais precisamos lidar, sem necessariamente tentar resolvê-las e eliminá-las. Isto é, quando estamos pensando numa conversa entre diferentes cosmovisões, justamente para preservar a integridade desses diferentes mundos em conversação, precisamos evitar a investida em uma “tradução total”, pois ela é simplesmente impossível. Logo, justamente para evidenciar o trânsito entre mundos (modernos e originários, mas também diurnos e noturnos) que experienciamos devido à colonização, é necessário levar adiante as compreensões que produzem efeitos (a forma como o senso comum pensa o sonho, por exemplo) e aliá-las a entendimentos díspares delas (maneiras que desafiam a forma tradicional de pensar).




Referências:
1 Nastassja Martin. À l’est des rêves. Réponses even aux crises systémiques. Paris: La Découverte, 2022.
2 Marisol de la Cadena. Earth Beings: Ecologies of Practice Across Andean Worlds. Durham/London: Duke University Press, 2015.


Texto de Anelise De Carli

Conheça outras histórias sobre os sonhos por meio do Sonhário da Mandala Lunar. A partir dessa ferramenta, convidamos você a pesquisar sobre diferentes cosmovisões e a cultivar outras relações com as experiências oníricas.



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